EU SEI, MAS NÃO DEVIA...
(Colaboração de Sandrinha Ambrosio)
Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia...
A gente se acostuma a morar em apartamentos e a não ver outra vista além das janelas ao redor. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas e também se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltada, porque está na hora; a tomar café correndo porque está atrasada e a comer sanduíche porque não há tempo para almoçar. A gente acostuma a sair do trabalho só quando já é noite; a voltar logo pra casa porque está cansada; a deitar e dormir pesado sem ter vivido o dia. E fica feliz por simplesmente dormir porque tem o sono atrasado.
A gente acostuma a pagar por tudo o que deseja e precisa. A batalhar e ganhar dinheiro para poder comprar. E a ganhar menos do que precisa. E a pagar mais do que as coisas valem. Acostuma saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho a fim de ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobram.
A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir revistas e ver propagandas. A ligar a TV e assistir a comerciais. A ser instigada, desnorteada, lançada na infindável catarata de produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas com ar condicionado e cheiro de guardado. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação dos alimentos. À morte lenta dos rios. Aos detritos lançados ao mar. Aos prazos de validade vencidos.
A gente se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a não colher fruta no pé, a não segurar uma flor. A gente se acostuma a tentar sorrir e a não receber um sorriso de volta. A esperar um dia inteiro e depois ouvir um sonoro “não” para as nossas expectativas. A ser ignorada quando tanto precisa ser vista. A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma mágoa aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Embora não perceba, logo a gente se acostuma a conter os sentimentos, a ignorar ausências e a se confundir nas próprias emoções. A gente acostuma a não se ralar nas asperezas para preservar a pele. A gente acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da dor, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida, que se gasta de tanto se acostumar... E se perde inevitavelmente em si mesma!
(Marina Colasanti)
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